sábado, 15 de novembro de 2008

Fundações comunitárias - transformando caridade em investimento social

As Fundações Comunitárias são instituições filantrópicas autônomas, sem fins lucrativos, sustentadas por doações, cujo objetivo a longo prazo é constituir fundos financeiros permanentes que serão aplicados em favor de projetos sociais voltados para as comunidades onde as fundações se inserem. A consultora da Fundação Ford, Rebecca Reichmann, esteve no Brasil para falar sobre sua experiência em uma das cerca de 500 fundações comunitárias norte-americanas - em San Diego, Califórnia - como uma alternativa para a obtenção e gestão de fundos para investimentos em projetos sociais.
Segundo Rebecca, a finalidade da fundação comunitária não é simplesmente financiar projetos: "sua real finalidade é construir um fundo permanente, pode-se falar em constituir um patrimônio da comunidade na qual a fundação está inserida".
Um dos pontos fundamentais para o sucesso da implementação deste tipo de instituição, é que a fundação comunitária tenha a identidade de criadora e mantenedora de um patrimônio financeiro da comunidade. Os recursos deste fundo permanente serão captados entre os diversos atores da própria sociedade e aplicados por profissionais como qualquer outro investimento financeiro. O rendimento deste fundo é que será destinado a financiar projetos. "Então, a princípio, quando o fundo é novo, não é possível desenvolver projetos, é preciso esperar que ele cresça e dê rendimentos. Isso deve ser muito bem explicado para a comunidade - que a idéia é de criar um patrimônio a longo prazo, e não apenas desenvolver projetos", afirma a consultora.
Rebecca explica que as fundações comunitárias nos EUA, frente à Receita Federal, são chamadas de "caridade pública", e, juridicamente, têm as mesmas características de uma ong. Isso é relevante para as políticas referentes ao uso dos fundos dessas instituições. Naquele país, uma fundação privada, frente à Receita Federal, tem a obrigação de aplicar pelo menos 5% de seus ativos em projetos sociais, enquanto uma fundação comunitária não está sujeita a essa exigência, mas, por outro lado, tem a obrigação de procurar sempre novas contribuições. A cada ano, pelo menos 15% dos recursos das fundações comunitárias devem vir de fontes variadas e novas. Para manter seu status, estas instituições devem procurar novas doações. Isso é importante porque as obriga a manter a transparência absoluta em suas atividades e um diálogo constante com a sociedade, com os doadores atuais e com os doadores em potencial.
Mesmo com um nome de caridade pública, as fundações comunitárias não têm nenhum vínculo com o Estado. Não existe participação do governo em nenhuma instância. Normalmente as fundações comunitárias são criadas por grupos que querem viabilizar ações filantrópicas de famílias, indivíduos ou empresas que não têm capacidade ou interesse em criar uma fundação privada. É uma forma de incluir em projetos sociais pessoas que não teriam dinheiro suficiente para criar uma fundação privada, que requer muito dinheiro e envolve muita burocracia, além de estar sujeita a uma regulamentação bastante rígida frente à Receita Federal. Assim, uma alternativa é contribuir para um fundo permanente dentro de uma fundação comunitária. Este fundo pode levar o nome de seu mantenedor, ou o de sua família, ou o nome de um tema, como meio-ambiente, por exemplo. O indivíduo que o criou, com os recursos de que dispunha, pode acompanhar passo-a-passo as aplicações que estão sendo feitas com o seu dinheiro e o destino dado a estes recursos.
De acordo com Rebecca, os doadores potenciais, nos Estados Unidos, geralmente são famílias de razoável poder aquisitivo ou empresas, que costumam ter valores bem conservadores. Assim, as fundações comunitárias necessariamente devem manter boas relações e uma boa imagem frente à sociedade porque vão estar sendo sempre avaliadas, e disso dependem seus recursos no futuro. A fundação comunitária também deve tentar manter uma posição de convocadora dos vários setores da comunidade, chamando os grupos mais excluídos para debate com as elites e com os setores público e privado. É um espaço neutro para convocar os vários segmentos da sociedade. Esse também é um papel importante, realizado por estas instituições.
O grande desafio para a implementação deste modelo de fundação no Brasil diz respeito a aspectos legais, tributários. Nos Estados Unidos, o governo, através da Receita Federal, criou incentivos fiscais para a filantropia, tanto de empresas quanto de indivíduos. Então, o incentivo para a população americana participar de uma fundação comunitária, ou outra fundação qualquer, é material, além da boa-vontade ou da generosidade.
Este tipo de estímulo à filantropia tem trazido resultados bastante positivos. "Nos EUA há mais de 500 fundações comunitárias, neste momento contabilizando U$ 27 bilhões em ativos - de onde se conclui que é um movimento significativo no país. Na Fundação de San Diego, nossos ativos no ano passado eram da ordem de U$ 490 milhões e foram destinados ao longo do ano U$ 35 milhões para financiamentos de projetos. Esta fundação tem 15 anos de existência, é considerada relativamente nova, mas está inserida em uma comunidade onde grupos e indivíduos contribuem de forma bem consistente, o que contribuiu para o crescimento rápido do nosso fundo. Há casos de fundações que contam com um fundo de U$ 1 milhão, e outras que têm fundos de U$ 1 bilhão em ativos, como a de Nova Yorque, Chicago e Cleveland" conta a consultora.
Do total do montante financeiro de cada fundo, entre 7 e 10% dos ativos são normalmente destinados para os projetos, a cada ano. Isso não é exigido por lei, é um percentual determinado pela prática, porque a forma com que as doações são feitas pelas fundações comunitárias também é diferente da forma de doação de fundações tradicionais. Numa fundação comunitária há duas formas de financiar projetos: uma, equivalente ao modelo das fundações tradicionais, onde os consultores e profissionais vão até as comunidades, reconhecem as demandas, analisam os projetos e aconselham o andamento (ou não) dos mesmos. Entretanto, a grande maioria dos financiamentos de projetos desenvolvidos por fundações comunitárias é recomendada pelo próprio contribuinte. Rebecca dá um exemplo: "se eu tenho 1000 dólares para contribuir com uma fundação comunitária, eu escrevo o cheque e crio o Fundo Rebecca Reichmann. É como uma conta dentro da fundação, só que este dinheiro não é meu, é da instituição. Mas eu tenho o direito de fazer uma sugestão para que a fundação contribua para um projeto escolhido por mim, com o qual eu simpatizo. A fundação não é obrigada a acatar minha sugestão, mas normalmente os conselhos diretores aprovam e providenciam o encaminhamento dos recursos para aquele projeto que eu escolhi, se ele for viável e conveniente".
As fundações comunitárias são mais uma alternativa para a obtenção de recursos que viabilizem projetos que têm como objetivo diminuir os níveis de pobreza e exclusão social. "Entretanto, para que este modelo funcione satisfatoriamente no Brasil, é primordial que se faça um trabalho paralelo, organizando forças em vários segmentos sociais para fazer um lobby junto ao Poder Público, objetivando a efetiva implementação da Reforma Fiscal" finaliza Rebecca.

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Extraído de http://www.rits.org.br/rets/re_novidade.cfm em 15/11/2008.

sábado, 1 de novembro de 2008

Identificação, conceito e justiça

O zelo dos reformadores protestantes em retomar o Cristianismo em sua essência e criar uma identidade cristã fora do Catolicismo atropelou tradições cristãs que remetem historicamente à herança abraâmica. Com a privatização da Igreja no século 18, o Cristianismo moderno se distanciou ainda mais dessas heranças. O cristão se tornou um indivíduo afastado do meio, inerte em atividades elevadas ao estatuto de sagradas. No final dos anos 1960, os frades dominicanos, envolvidos na luta contra a ditadura militar no Brasil, foram expressão da mudança de rumos da organização popular na sociedade brasileira. O Brasil vivia dois conflitos: a economia em mãos estrangeiras e o Estado em poder de autocratas militares. Partindo de uma nova maneira de ler a Bíblia e da preocupação com o que significaria ser cristão naquela conjuntura, abandonando a antiga dualidade entre fé e vida, a ordem dos dominicanos se tornou o embrião dos movimentos populares. Durante o golpe militar, esses movimentos foram vistos como laboratórios de idéias comunistas e seus participantes perseguidos pelo regime autoritário; no entanto, a população encontrou entre eles a sua voz. “Quando dou pão aos pobres, chamam-me de santo, quando pergunto pelas causas da pobreza, me chamam de comunista”, diz Dom Helder Câmara. Se com a supressão dos direitos constitucionais, perseguição política, prisão e tortura aos opositores, censura aos meios de comunicação, as pessoas imergiram em um universo despolitizado, a ordem dos frades fazia o caminho inverso. Mobilizaram-se para promover novos espaços públicos, amparar presos políticos e convergir grupos que, por ideologia, se posicionavam em resistência às injustiças contra o povo. A desigualdade social, que ao longo da história é denunciada por diversos grupos, é costumeiramente fruto de mudanças nas ênfases econômicas e no modo de produção. Em Israel, por volta do século 8 a.C., a economia da nação, a exemplo do modo fenício, investiu no incremento do comércio em detrimento da agricultura; o que resultou, como afirma Toynbee, em “uma alteração quase revolucionária na distribuição da riqueza, com desvantagem para a maioria pobre da população.” Nesse período reinava sobre Israel Jeroboão II. Seu reinado foi marcado por um período de expansão territorial e prosperidade. Mesmo com o cisma ocorrido anteriormente, na morte de Salomão –que dividiu a nação em dois reinos– Israel vivenciou no século 8 a.C. um período de estabilidade política e prosperidade econômica com a tomada da Síria pela Assíria, o que possibilitou a expansão territorial por meio da retomada das terras ocupadas pelo reino sírio. Todavia, o bem-estar econômico e político ocultava uma decomposição social. O contraste entre ricos e pobres denunciava injustiças e degradação moral. Esses fatos são evidenciados nos escritos do profeta Amós, presentes na composição bíblica. Amós, contemporâneo de Jeroboão II, relata a sociedade da qual faz parte. A fluência e a construção de seu texto revela um homem em contato direto com as questões do seu tempo em matéria de sociedade, política e economia. A palavra profeta chega a nós através do vocábulo hebraico nabi, ou “aquele que proclama”; um conceito diferente do utilizado hoje, que relaciona a palavra à predição. Dessa forma, o trabalho de Amós era o de anunciar a Israel o castigo que viria como conseqüência de suas práticas de injustiça. Fazendo-se uma voz contra injustiça, Amós denunciava as práticas sociais que iam contra o conceito de justiça presente na religião e na cultura hebraica. A essência da ação de Amós se concentra na sua compreensão da idéia de Deus. Para ele, todo entendimento de Deus estava baseado no pressuposto de justiça. A moralidade e a justiça eram centrais em Deus. Dessa forma, ele apresenta em seu discurso a implantação da justiça como única via de remissão, colocando o homem como agente direto de transformação e responsável pelo destino da sociedade. Amós posiciona o homem como um agente social. O caráter social da atuação dos profetas em Israel está relacionado à influência que eles representavam no campo das idéias. Sua maior responsabilidade não estava em estruturar um plano de reforma social propriamente dito, ou uma mobilização social em termos revolucionários, mas em produzir conceitos a serem lançados sobre a sociedade, que modificariam tanto o pensamento como a prática social. O filósofo José Luís Sicre, em sua obra Profetismo em Israel, aponta o caráter social da atuação dos profetas: “Um dos aspectos mais célebres e importantes da mensagem profética é constituído pela sua denúncia dos problemas sociais e pelo seu esforço em prol de uma sociedade mais justa.” Na modernidade, com o apogeu do iluminismo, as sociedades ocidentais se empenharam em dissociar a religião das questões sociais humanas; retomando o conceito grego que diferenciava os espectros humanos entre mythos e logos, em que o mythos englobaria exclusivamente as questões intemporais, religiosas e de transcendência. Desde então, a religião tem sido compreendida como responsável apenas pela espiritualidade do homem, não comunicando em nada com os enfrentamentos da sociedade em geral. Parecendo abusiva e fora de jurisdição qualquer crítica social ou atuação relevante, as sodalidades hoje enfrentam o dilema de responder a questões sociais em um mundo que não as compreende. Na prática, as sodalidades religiosas buscam responder a três necessidades: identificação, conceito e justiça social. Sociologicamente, representam a capacidade humana de construir grupos com um propósito específico. Em Roma, por volta do século 7 a.C., o termo sodalitas englobava dois agrupamentos sociais: um político, outro religioso. As sodalidades políticas reuniam bens e habilidades de pessoas abastadas para se promover, enquanto as religiosas convergiam recursos e talentos para se ocupar das questões que envolviam a complexidade humana, seja em aspectos de moral, transcendência ou vivência. Com a decadência do Império Romano, o conceito de sodalidade política se esvaneceu, permanecendo exclusivamente o de caráter religioso. Hoje, as associações que ousam se afastar do conceito iluminista sobre a prática religiosa para convergir habilidade, conhecimento e know-how estão fadadas a serem desacreditadas em sua finalidade. Na pós-modernidade esta prática parece ser legítima apenas às instituições do mercado.
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Texto extraído de http://3cnetwork.org/pagina.asp?id=102 em 01/11/2008.